segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Nojeira

Esses dias estava lembrando de quando fazia Arquitetura. Estudava com uma garota chamada Lili que era auxiliar de necrópsia.

Portanto quando tínhamos trabalhos em grupo, e ela estava de plantão, tínhamos que ir ao Instituto Médico Legal e, esperá-la no alojamento (enquanto ela terminava de abrir cadáveres e virá-los do avesso).

Numa dessas vezes ela adentrou o quarto onde eu estava aguardando.
Ela estava com os olhos arregalados e respiração ofegante, dizendo "Que nojo! Que nojo!" com as mãos na boca. Visivelmente atordoada.
Perguntei o que tinha sucedido, imaginando que o cadáver daquela noite teria sido algo inédito para ela.

Imagine só, trabalhar abrindo corpos humanos em putrefação é algo que gera certa indiferença ao que nós consideramos nojento. E para Lili estar naquele estado em que se encontrava, com certeza o defunto era uma coisa extremamente... excepcional.
Tentei usar minha imaginação para visualizar o que quer que Lili tivesse visto. No mínimo não deveria parecer um ser humano. Talvez a textura fosse viscosa, talvez o formato... disforme, talvez a cor, talvez o cheiro?
O que tinha de diferente naquele cadáver que pudesse trazer tanto horror a uma profissional da morte?
- O que aconteceu, Lili? - perguntei meio com medo de ouvir a resposta.
Ela buscando se orientar, me revelou finalmente:
- Ali no corredor... uma barata... enoooorme!!! Enoooorrrmeeeee!! Nojo! Nojo! Nojo!



Desde esse dia eu passei a refletir o conceito de "nojeira"...
Mentira nunca refleti.
Mas me parece questão de hábito. Ou de cultura?
Ou psicológico?
Esses dias me deparei com o "objeto" da minha fobia e, mesmo que minha razão dissesse "não é nada demais" eu enrijeci-me toda e quis vomitar...
Até quando?



domingo, 21 de agosto de 2011

Beduíno

Um ser viajante, o beduíno
Traz um gesto genuíno
Ao entranhar-se nas lacunas
Do mundo, das altas dunas
Passou, ele, pelo oásis, mas não encontrou fortuna
Nem ventura
Conheceu um ser humano
Igual sua própria figura

Tão estranho o outro ser
Que era também tão outro seu
O viajante perdeu-se
Pela primeira vez

Quando achou o caminho da volta
Despediu-se em cortejo
"Sabe Alá quando eu retorno para ver quem hoje vejo"
Talvez breve, talvez nunca
E aproveitando o ensejo
Beijou a outra figura
Com a boca rachada do sol, da areia
da poesia leve e pura

Partiu pelo deserto de cascalhos meio mornos
Pensava com seus camelos
"Sabe Alá quando retorno"


Cora Rufino

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Didascália 2

- Por que você está usando vermelho?
- Não. Está enganada. Estou vestindo branco. O Sr. Jordán gosta que todos os empregados estejam de branco. Assim, passam pela casa como se fossem móveis ou parte das altas paredes.
- Mas está tudo vermelho... por quê?
- Logo logo voltará a enxergar de novo, senhora.

(Texto dramatúrgico "O Travesseiro de Plumas" de Francisco Alves Gomes, inspirado no conto homônimo de Horacio Quiroga)