terça-feira, 26 de abril de 2011

O PRAZER É MEU!

Não era feia, pelo fenótipo.
Não era malnascida, pelo semblante.
Não era pobre, pelas roupas, pela bolsa, pelo cabelo bem tratado
Não era puta, porque a indumentária e a maquiagem estava muito bem dosados.
Não sei se eu me baseava por estereótipos ou pelos arquétipos teatrais. Provavelmente por estereótipos.
Mas era uma mulher, bonita, de seus 40 anos, de olhos claros, cabelos ruivos, elegante e bêbada.
Cambaleava, mas numa cadencia não-vulgar.
Um personagem gostoso de analisar.

Eu já tinha visto ela passar por ali dias atrás.
Como esquecer aquela imagem?
Entre loucos e indigentes, tinha surgido aquela figura limpa, de postura ereta, tropegando bem de leve segurando sua bolsa a tira colo. Andava em zig-zag até sumir dobrando a esquina.

Mas hoje a noite, aquela mesma figura, do mesmo jeito que estava do outro dia quando a vi, sentou-se ao meu lado no ponto de ônibus.
Cada uma na sua, em silêncio.
Um rapaz se aproximou dela e perguntou:
- Como eu faço para te conhecer?
- Não faça nada! – ela disse – Você não vai me conhecer.
O rapaz conformou-se e foi embora.

- Cê viu isso? - Ela virou para mim.
- O quê?
- A cantada do cara! Vê se pode! Não existe mais gente criativa nesse mundo!

E a mulher falava. Desatamos uma conversa sobre homens e sobre o bar do outro lado da rua.
- Eu adoro esse bar! – ela disse apontando para o bar em frente ao ponto.
- Eu sempre pego ônibus nesse ponto aqui por causa do bar. – falei - Ele me dá a ilusão de que eu não estou só. E que estou rodeada de gente feliz e que se gritar por socorro alguém vai sair de lá para me socorrer. Bobagem.
- Esse bar é tranqüilo – ela completava – hoje por exemplo, bebi todas e ninguém mexeu comigo. Há duzentos anos venho aqui e sempre foi tranqüilo. Sento, bebo quieta e não sou importunada.
-...
- Cê bebe?
- Eu? Bebo muito pouco. – respondi
- Cê bebe comigo?
- Hã... é que eu...
- Cê tem cara de quem não bebe cerveja. Só bebe destilados.
- Bebo cerveja sim! – disse eu indignada
- Então vou pegar dois latão pra gente!
- Ah, não! Precisa não... eu nem tenho dinheiro...
Ela já tava atravessando a rua.
Voltou com os dois latões de cerveja. Agradeci, meio sem graça. Fizemos um brinde depois de abertas as latas. E eu, ao me ver naquela situação, tomando cerveja com uma estranha em pleno ponto de ônibus pensei: Aloka!

- Como é o seu nome mesmo? – ela perguntou.
Eu respondi mas pensando que ela, como todo mundo, iria esquecer dali a 5 minutos. Ou me chamar de Carol ou Flora... como todo mundo também.
- Nome de uma escritora... – informei
- Eu sei. Eu lembrei dela quando você falou.
Acrescentei “culta” à minha listinha mental sobre a mulher.
O nome dela era Cássia e ela falava:
- Tudo que começa com “C” é bom: Cássia, Cora, coração, cinema, carro, Chevrolet, cerveja, cachaça, carinho...
- Verdade!
E rimos.
No fundo eu a usava como proteção. Quem passasse por ali não saberia que na verdade eu estava desacompanhada. Mas lembrei também de quando fazia Jornalismo e entrevistava pessoas estranhas a mando do professor:
- Você faz o que da vida, Cássia? Digo... de dia.
- Sou segurança.
- Sério?
- Pois é! Eu com o meu tamanhinho... e de um banco, pra piorar.
- Cê gosta do que faz?
- Amo.
- Ai! Uma barata! – exclamei.
- Onde? – ela levantou-se – Adoro baratas! – e pisou nela com sua bota de salto. Perguntou:
- Fez barulho?
- Fez não. – falei
- Que pena... adoro quando elas fazem barulhinho... – sentou-se falando o quanto estava triste porque a barata não fez barulhinho ao ser esmagada. Barata fofa.
Mais tarde pediu:
- Cê faz barreirinha para mim? Vou fazer xixi ali.
- Aqui no meio da rua?
- Ah, então ali na esquina!
Ela correu para a esquina.  Eu prometi barreirinha mas não fiz, com vergonha.
- É que tem gente passando...
Ela mijou assim mesmo.
- Você é atriz! Não deve se chocar com essas coisas!
Notei que eu também era alvo de estereótipos.

Noutro momento ela falou:
- Na empresa onde trabalhava eu achei no lixo uma carteira...
- Meu ônibus! – anunciei.
- ... e eu era uma reles servente, veja você...
Levantei, fiz sinal para o ônibus parar
- ... uma carteira bonita, de couro...quando vi, pensei em dá-la para o meu namorado...
O ônibus parou e enquanto as portas se abriam ela berrava o final da história com rapidez:
- TINHA UM CHEQUE DE DOIS MIL REAIS DENTRO DELA! E EU DEVOLVI! EU DEVOLVI!
- QUE BOM, CÁSSIA! – gritava eu subindo a escada – PRAZER EM CONHECÊ-LA!
- O PRAZER É MEU!


13 comentários:

Maira disse...

Claro que me perguntei se isso aconteceu de verdade. Uma pessoa que simplesmente deixa fluir uma conversa boba e sem muitos cliches. Mas como vou saber, aifnal voce é uma atriz, pode estar só atuando.

Marta Llancafilo disse...

Não vejo a necessidade de pensar se é verdade ou não. Vindo de quem vem, não duvido de nada. De toda forma rendeu uma ótima história!

Unknown disse...

E que ótima história, ou estória. não importa, só sei que gostei muito, fiquei rindo sozinho aqui hehehe.

Bruna Castelo Branco disse...

Minha irma deve ter rido horrores, porque eu mesma dei minhas gargalhadas! Cada figura que te aparece nessas Minas Gerais, acho que esse lugar é mesmo perfeito pra vc, Corita! beeeeeeeeeeijo.

Anônimo disse...

Muito boa, por uns 3 minutos prendeu minha atenção. saudades cora :)

Nara Núbia disse...

Claro q é verdade!!!! né?
Tem coisas q so acontecem com a Cora...rsrsrs
Muito bom mesmo!!!!! Já pensou se isso fosse ser jornalista? aí vc podia até prestar vestibular pra isso, né?

Gabriely Tavares disse...

Tem coisas q so acontecem com a Cora...rsrsrs ³

foi tão gostoso ler esse post =)
fiquei imaginando a Cássia... *-*

Cora disse...

A mulher depois de me pagar uma cerveja e matar uma barata recomendou que eu fizesse um curso para ser segurança. Disse que não existe nada mais teatral que um curso de segurança.

Elimacuxi disse...

Não me importa a veracidade da vida
ela é ferida aberta,
e sangra quando menos se espera:
às vezes, na parada de ônibus
as vezes, quando se sai embriagado do bar.
Que lindo Cora
vc retrata a vida com um gosto especial, tuas crônicas me comovem sempre.
Você consegue registrar o extraordinário da vida como ninguém. bj!!!!

Jaya disse...

Lembrei do tempo onde eu comentava o blog da Fada Milly e adorava. Fico contente que você esteja voltando a atualizar isso aqui com frequência.

E eu não sei o que pensar de uma pessoa que fiz das baratas: "adoro quando elas fazem barulhinhos". Haha.

Beijo, Corete.

Jaya disse...

*fiz = diz

Kalyua disse...

Concordo, jaya, nada pior do que o barulho da morte de uma barata! credo!
Sobre o curso de segurança é bem verdade isso, lembrei do Pânico e suas brincadeiras com seguranças... Eles são bastantes teatrais mesmo.

Fui no sesc com Murilo ontem, Amazônia das artes, peça ótima! cia. de teatro independente do Rio com a peça REBU. Rebu mesmo foi depois com o bate papo. Baixaria coralina, estou envergonha da tua classe aqui de BVB. Tudo porque os atores interromperram a peça para reclamar com a platéia, composta de adolescentes do EJA, que não sabiam se comportar nun teatro. Um vexame!!! E a TUA CLASSE todinha recriminando os atores por tal atitude.
Que os atores roraimenses repensem suas atitudes, eu fiquei com vergonha :(

Brescia Magalhães disse...

Devo dizer que "tropegando" é uma das melhores palavras q há!!!!

e dito isso, espero que tenha sido uma cerveja digna... pra combinar com todo o resto! :)